terça-feira, outubro 05, 2010

Novembro Quente

Seria públicado na revista Apes


Novembro Quente.

Alessandro F.Soares



Um dia, como qualquer dia desses, acordei suando de calor. O sol batia forte na veneziana de minha janela deixando quarto ainda mais abafado que de costume. Levantei, quase cai ao pisar nos sapatos que estavam distribuídos no chão. Cambaleando fui ao banheiro, lavei o rosto e o pescoço. A seguir, sentei na privada e caguei. Fiquei uns tantos vinte minutos entre depositar a matéria fecal propriamente dita e devaneios que iam do nada a lugar nenhum.

Limpei a bunda, lavei as mãos novamente e fui à cozinha. Os gatos se lamuriavam aos meus pés pedindo ração. Servi-los é engraçado. Num minuto para eles, eu era a pessoas mais carinhosa que existia, após servi-los não era apenas que um obstáculo ao seu desjejum.

Peguei a cafeteira em cima da geladeira. Duas colheres de sopa de café mais dois ou três copos de água soma-se a isso o coador e mais 3 minutos. Lá estava eu saboreando um ótimo café às nove e trinta da manhã de um dia qualquer de uma semana qualquer. Me sentei no sofá a zapear o controle do aparelho televisor. Nenhum programa na televisão que me entretece, apenas o zunir dos carros num vai e vem frenético da cidade que nunca para. Desliguei a televisão, lavei a pouca louça que estava estacionada na pia. Voltei ao meu quarto, retornei a cama e fiquei pensando. Acometido por algumas ereções.

Pensando numa garota que eu tinha visto semanas atrás no terminal de ônibus enquanto fazia hora no bar tomando cervejas com grandes perdedores da vida. Devo uma simples descrição do bar. Esse fica em frente ao movimentado terminal urbano, nele, muitos como eu, param para fazer alguma coisa ou coisa alguma, não importa. Ali, uns apostam no jogo do bicho, outros apenas entram e ficam observando o vai e vem das formigas humanas que vem e vão, uns tantos enchem a cara diariamente, enfim, um buteco sujo de parada final de linha de ônibus. Lá se vende ovos que flutuam numa água salmorenta, torresmos mais peludos que o mais peludo dos ursos, camisetas fraudulentas de times de futebol, e claro, todo e qualquer tipo de derivado de álcool de procedência e qualidade duvidosa e tantas outras porcarias tais como chocolates vencidos, cigarros de pedreiro, balas, pirulitos e chicletes e etc.

Numa noite de novembro resolvi passar por aquele bar. Estava muito quente por sinal. Saí do trabalho e fui tomar algumas poucas cervejas com os trocados que me restavam no final do mês. Sentei no banco do balcão e pedi uma cerveja e um cigarro solto. A conversa no bar girava em torno de mulheres, futebol e discos de forró e samba. Eu já tinha bebido uma garrafa quando pedi outra, e mais outro cigarro. O flameguista que estava me atendendo prontamente me deu a cerveja e o cigarro.

Eu estava lá de corpo, minha mente vagueava em outras paisagens, não me lembro ao certo no que pensava, mas não prestava muita atenção no que aqueles digníssimos senhores falavam. Fui dragado de volta ao planeta Terra, quando vi uma linda garota que vinha em direção ao bar. Imagino que ela tenha descido na estação do metrô e passou por ali a fim de esperar seu ônibus.

O seu andar, o traquejo de suas pernas dançavam aos meus olhos. Pareciam horas que se passaram em segundos. Seu bailar era sinuoso, tântrico, pecaminoso. Era um silvo de paixão e cólera numa noite quente e úmida de novembro na grande cidade. Suas coxas se sobressaiam no vestido de seda cor creme. Uma após a outra, suas pernas iam avolumando-se em minha retina, uma após a outra, sempre nessa sequencia pecaminosa e irrefreavelmente nauseabundo. Seus movimentos consumiam cada centímetro de meu corpo e sugavam minhas narinas em direção às suas tenras carnes volumosas e salientes.

Ela mais parecia dançar efusivamente enquanto andava, do que propriamente andar. Fui rigorosamente apanhado por seu traquejo simples, porém, com uma classe que há tempos eu não via em uma garota. Seu olhar distante, entretanto, aceso e esperto. Aquelas canelas formosas e roliças e um laço tatuado no fim de uma de sua canela. Seus tornozelos pareciam vigas gregas talhadas em ouro maciço que iam avolumando-se quanto mais próximo se aproximava de suas largas ancas. Eu estava sendo bombardeado por aquela visão angelical de montes de ossos rejuntados com cartilagem e carne que colaram sua pela na minha retina me fazendo sonhar em penetrar na sua história a fim de construir um edifício de nossos corpos colados um ao outro.

Ao passar por mim, a fim de me fazer forte, tencionei não olhar rapidamente enquanto ela passava pelas minhas costas, e assim o fiz, fiquei com o corpo ereto me fazendo de duro e irrepreensível absorto no que pareciam serem meus pensamentos naqueles segundos, mas não pude, fui vencido rapidamente. Seu perfume me envolveu e fui dragado e expulso em direção novamente à sua pele. Ela passou. Quando estava entrando no cubículo do banheiro torci o pescoço em sua direção. A cerveja descia em minha garganta como se fosse a caída de uma cachoeira enorme. Eu não engolia mais. A cerveja simplesmente descia rapidamente por entre minhas veias jugulares, sendo que meu corpo todo se tinha voltado a aquela figura graciosa que sumiu ao entrar no banheiro imundo daquele bar que fica em frente a aquele terminal urbano da cidade suja de monóxido de carbono, gases tóxicos e muitos outros, bar esse que vende dentre tantas iguarias tais como, ovos mofados, camisetas falseadas, aguardente e outros derivados do álcool de péssima ou nula qualidade.

Ao entrar no banheiro imundo a porta fez seu movimento pendular de abertura e foi se fechando vagarosamente e voltando ao seu lugar e deixei de ver seus cachos dourados assim que se fechou totalmente. Voltei a posição de costas para todos no bar, ouvia apenas os comentários daqueles digníssimos senhores, isso tudo não levou mais que dez ou quinze segundos, e agora, naquele momento ela deveria estar no banheiro. Fiquei pensando, no que ela estaria a fazer naqueles minutos dentro daquele cubículo. Eu bem que poderia ter entrado no banheiro e tê-la salvo daquele imundo lugar. Passou-se um ou dois minutos que meu coração parecia inflar nas paredes do boteco sujo e meu ventre seria o lugar onde aquela criatura deveria fazer suas necessidades fisiológicas. Pensava no que ela estava a pensar. Será que pensaria algo das pessoas que tinha visto ao entrar? Ou mais provavelmente acharia que todos ali eram os perdedores de uma noite de novembro, que se satisfaziam em encher seus buchos com litros de cerveja e outras tantas bebidas? A pensar fiquei os tais momentos a imaginar as suas idéias sobre mim. Queria que fosse sobre eu! mas é claro. Acho que não, mais provavelmente ela estivesse angustiada de poder, ou ser obrigada a utilizar um banheiro insosso e gordurento. Deveria ela estar ansiosamente pensando em terminar tudo e sair, mesmo talvez sem se limpar.

Eu fiquei aqueles minutos pensando nisso e em mais trocentas outras possibilidades. Eis que a porta se abre. Ouço o traquejo se seus sapatos. Naquela altura todos os sons apenas vinham de coisas relacionadas a ela. Vi uma de suas mãos desenroscarem a alça de sua bolsa da maçaneta. Seus dedos roliços e as unhas pintadas de alguma cor parecida com rosa, algo bem suave. Nada de uma cor forte, era uma cor com personalidade. Ela tinha personalidade, eu percebi isso no seu andar, na forma que ela cuidadosamente, mas sem perceber, andava distribuindo seu corpo, ora pra lá ora pra cá. Tais movimentos não facilmente passados de herança a herança, imagino. Parecer ser mais uma coisa, como poderia dizer, endeusante. Eu ali como um espectador dela. Se ela soubesse como tentei decifrar sua vida para além do seu corpo, sentaria por horas a fio comigo e repassaria suas aventuras em vida e me contaria, minuto a minuto do que ela poderia lembrar.

Os degraus que ela desceu foram muito bem vencidos por suas fortes pernas. Naquele momento, eu já tinha totalmente entregado meu corpo aos seus movimentos. Tinha em mente, tentar me fazer de forte e não observa-la, mas naquela altura do campeonato, meu jogo tático tinha ido às cucuias com a simples presença dela. Ao descer os degraus foi rapidamente rumando a saída do bar. Passou por mim, lançou um breve sorriso, que me petrificou, ao parar na entrada do bar, minhas narinas, traquéia, esôfago e todo sistema nervoso travou, tanto que minhas retinas apenas a observavam, eu fui sugado, totalmente por aquele ser. Jogado num redemoinho de vontades em tê-la por qualquer motivo que fosse. Seja lá, para conversar sobre as futilidades de seus amores, das impossibilidades dos sistemas operacionais, estagnação da cultura televisiva, colapso do sistema de transportes públicos da cidade de São Paulo. Seja para alguma coisa, eu me sentiria lisonjeado em dividir alguns momentos com aquela mulher e poder investigar seus odores mais íntimos e pessoais, descobrir suas aventuras de adolescência e ter em minha memória suas lágrimas de amores passados. Eu poderia dividir com ela minhas expectativas quanto aos planos futuros, contar-lhe sobre as desventuras de amor, explicar-lhe a meu ver porque o mundo continua ser habitado por seres moribundos que nos são indiferentes. Quem sabe ensinar alguns acordes de guitarra, ou mesmo, sobre as impossibilidade de jogar futebol imaginário na altura dos meus trinta e um anos.

Ela se foi, atravessou a rua, meus pensamentos me consumiram de cima a abaixo. A febre que eu tinha no corpo foi aos poucos passando e os goles de cerveja foram descendo com mais calma e assim foi preenchendo meu estomago. Ao atravessar a rua fiquei preocupado, mas ela chegou muito bem ao outro lado, no terminal. Dali em diante era ela e sua condução, e de longe eu ainda pude vê-la por alguns parcos minutos. Quando seu ônibus chegou me levantei, mas não pude mais vê-la. O ponto estava cheio todos subiram, o veículo saiu e não mais sobraram pessoas na parada. Assim terminou a minha viajem por ela. Não consegui seu nome, telefone de casa ou celular. Também não consegui seu título de eleitor e muito menos seu número de identidade. Suas apólices de seguro, número de pessoa física, tipo sanguíneo. Nada.

Não tive coragem e me martirizo até hoje. Já fazem cerca de seis meses ou mais. Não a esqueço e nem ela a mim nas minhas memórias. Eu sei, ela sabe que eu a lia de cima a abaixo. Ela sabe quem sou. Pra mim, ela sabe, tem em sua memória o melhor homem a quem poderia proporcionar vida. Quem sabe um dia, eu a encontre em alguma esquina e quem sabe, ela venha me perguntar se eu seria um tal que num dia de novembro quente interpretou sua personalidade sem sentir o frescor de seu hálito.