quarta-feira, julho 05, 2006

O orvalho que lava feito lava

Embarque

O olhar se apresenta aos tons azuis cintilantes do alvorecer, e meus olhos remelentos e lentos ainda que estão num zunido de sono se fecham a lutar por mais sono. Todo dia assim tem sido. E forço a pupila abrir ao mundo, feio por ser cedo é verdade. Mas a maré caminha desse jeito, e já que esse barco ruma deslizando ao porvir me aprumo e vou adiante, deixando o útero da minha quente cama pelas nuas calçadas banhadas pelo orvalho da noite que escorre das janelas das casas.
São tantas coisas a amarrar a atenção que o sono se esvai, juntamente aos passos deixados a metros atrás, segundos passados, memórias trocadas e pensamentos salvos. Adentro a esfera lúgubre do diversos caminhos às diferentes localidades, e exercendo o caminhar dirijo-me a estaca zero do amortecimento corpóreo a prostrar-me num gélido banco, o sono me traz de volta a sensação do útero quente. Mas é passageiro e sou também passageiro. Sentado e sem encosto para minhas costas, espero o navio que me conduzirá sem volta ao raiar do dia.
A fila de escravos se compromete a luta por assentos no navio, observo os sorrisos que brilham sem sol, e me pergunto como conseguem. Mas isso até ser conduzido a minha passageira cela de trinta minutos. Já devidamente encarcerado persigo o resto de sono que ainda parecia vivo, mas como de costume, as pupilas já estão salientemente abertas demais para que seja novamente decretado o cochilo. As paisagens começam a dançar, umas corretamente perfiladas a outras num encadeamento chatíssimo pra serem lidas tão cedo. Outros navios passam, outros portos, outros escravos, outros cansados, outros olhos remelentos, outros lentos. O balanço desta embarcação faz com que muitos vomitem, e lá vem de tudo que possamos imaginar. É um vômito meio seco, que escorre como pasta de dente das cloacas verborrágicas, e depositam-se sobre fendas na minha memória e vão concretando minha atenção a esta suja substância.
Meu porto de desembarque se aproxima. Tenho de esforçar-me para que meu corpo se desprenda de minha cela. Uma vez solto, rumo ao fim da embarcação. Sacudo a sinaleta ao comandante, que tangenciando no mar dos porcos vivos e mortos, deposita minha sonolenta carcaça ao porto de destino. Agora tenho de subir a passos largos a fenda chamada rua. Entrando nesta definitivamente a lembrança do útero quente vai ficando para trás.
O que sobra são apenas as visões. Um infinito emaranhado de sensações delegadas pelo sono.
O que resta são das diversas possibilidades do resto do dia. Dentre estas, certamente o cansaço reina.
Infinito, vivo e reinante delimitador vír-a-ser...Cansado que seja...Vír-a-ser cansaço no útero cansado do cotidiano

Desembarque

Um comentário:

Anônimo disse...

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