Embarque
Hoje escolhi não sair. Não ver mais ninguém, viver o meu casulo inquebrável de minutos e mais minutos, que se tornam horas e dias passam, rugas brotam e a velhice se aproxima mais e mais. Sem que ninguém pudesse perceber fiquei horas e mais horas sem fazer absolutamente nada. Pela minha preguiça, com alguns posso ter falhado, outros desmarcado e a todos um sincero pedido de desculpas. Mas hoje não! Não pude deixar meu cansado corpo a vagar por aí.
Fiquei em casa alimentando meus outros amigos e cuidando de uma amiga que está doente do pulmão e não come nada a dias. Tinha pensado em sair, mas mudei de idéia. A vontade de novamente se sentir só retornou a esse lar, e como vem sendo tive de tentar lidar com isso, a diferença foi a escolha. Partiu de mim. Geralmente tentava me cercar de todos pra não me sentir só, fazia questão do auê da rua, das conversas, gritarias e tantas outras coisas. A quantidade de cerveja bebida hoje não me convenceu, até porque não bebi.
As risadas, os gestos, as piadas. Os pedidos, as contas, caminhadas e o sono. Não! Por hoje não.
Desde que tudo se iniciou, esse cortejo vem sendo diferente. A cada túmulo visitado o silêncio é ouvido de maneira diferenciada. Hoje o silêncio apenas quebrado pelas reclamações e pedidos de refeição de um amigo que não pára de engordar e pede mais comida.
Achei que fosse ser um dia realmente diferente, mas optei pelo mesmo. O cortejo do mesmo silêncio.
Também não esperava nada mais que isso, sozinho talvez pudesse eu ouvir mais minhas comiserações e questões relativas a isso. Completamente afundado em meus devaneios não cheguei a lugar algum. Depois de alguns acordes, e idas e vindas do meu quarto, uma boa quantidade páginas lidas, alguns minutos de televisão assistida, enfim, cá estou da mesma forma que antes. Meus passos se inscrevem no tapete e os leio mais e mais, sem que possa me ver novamente. Um cansado corpo se esvai lutando pela manutenção das memórias.
A roupas jogadas pelo chão, as marcas das caminhadas e as feridas abertas a sangrar mais um pouco a deixar um lastro de sangue espalhado no carpete.
A dor que pesa no pescoço me faz sentir também dor de cabeça. O peso do copo de água é demais no dia de hoje, e já foi assim quando tive de esvaziar minha bexiga no banheiro minutos atrás, o corpo é pesado da mesma forma que o copo se fora antes.
Um diálogo sem interlocutor e a escolha feita a esse caminho silencioso. Poderia sair agora e caminhar pelas ruas exatamente às 2h15, exatamente nesse momento essas ruas são uma representação do meu espírito. Um sinal de buzina ao fundo, uma xiado da geladeira, o pinga-pinga da torneira da pia.
Tudo do mesmo jeito e nada no seu lugar. O cansaço da vista contrasta com novas visões ou seriam devaneios ocasionados por esse problema. A divisão das casas e todos dormindo, alguns andando pra cima e pra baixo, gritando a procura de seus comparsas na noite, que come a noite a vomitar o dia.
Estive ali, sentado o início da noite toda, preparando as gorjetas ao senhorio da noite. Esse homem que vem às vezes pra recolher seu sagrado dízimo da putrefação dos relacionamentos e da vida. Sentado fiquei ao assistir os programas televisivos e o requintado senhor chegou cobrou e caiu fora. Mais uma vez, com ele nem precisei dialogar, já me conhece esse velho. Diria que sabe pra onde vou, já especulando de onde vim. Mas sem problemas, ele funciona assim. Completamente absorto nem me lembro por onde ele possa ter passado, isso não era o mais importante nessa noite. Cheguei a conclusão que ficar sozinho hoje, se constituiu muito mais que uma conjugação do destino que possa ter imposto isso, muito pelo contrário. Eu impus o destino dessa noite a partir do momento que pensei nos diferentes caminhos que poderia ter tomado. Ou melhor, impus isso na medida que me senti vazio. E necessariamente pra se sentir totalmente vazio, eu preciso não fazer nada. A não ser explicitar minha ausência aqui. O espelho do atual momento.
Das outras falei de organização, dessa vez nem toquei nesse ponto. Me parece que a partir do momento da escolha por um determinado caminho o mar silencioso se ocupou por organizar minha cabeça e fazer com que eu pudesse ficar quieto sem pronunciar uma palavra se quer por horas e a conversar apenas com meus vazios.
Engraçado que de tanto medo da solidão, hoje esta foi a escolha a ser tomada. Ao olhar pra direita consigo ver ainda minhas pegadas no chão. Mas sei que serão apagadas como as pegadas são apagadas na praia com o aumento da maré oceânica. Vem sendo assim, minhas pegadas vem sendo esquecidas há dias. Sei que podem ser esquecidas todas elas, tentarei não ter mais medo no futuro, se bem que diariamente lidando com isso, como hoje, eu mesmo possa pegar uma escavadeira e dar um fim nessas marcas do passado.
Daqui a pouco vou me deitar e ficar sonhando com os olhos abertos retornando aos meus dias de juventude e escondendo nas memórias a fim de me esconder da vida. Mas o tempo passa, e mesmo que não queira que as pegadas se apaguem elas já estão sendo removidas de algum modo, por alguém.
Pois é, cheguei aqui e não sei como retornar não sabendo se ir adiante é a melhor coisa a se fazer. Como disse anteriormente, hoje se traduz assim; deixei a algazarra pelo silêncio. Ausência de minha voz propagada aos quatro cantos da terra.
Ausência de mim.
Desembarque
Um comentário:
Impressionate como você consegue, nesse texto, quase visceral, escrever de forma que me fez vislumbrar teus sentimentos, teus momentos.
D+
Os vazios podem ser tanto uma abertura para o novo, para o renascimento de si quanto um abismo para os próprios fantasmas que assombram e encurtam a nossa finitude.
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