quinta-feira, março 24, 2005

Sonhei!

Embarque


Sonhei! Mas de um jeito diferente, realmente um sonho diferente. Recordar anos num espaço de minutos, ou sabe-se lá se foram horas...mas o engraçado é que foi um sonho de quinze dezesseis anos atrás. Coisa que nunca (ao menos que me lembre) ter acontecido. Sonhava com a imensidão de situações que se constroem no hoje, com o contexto de atuais situações, mas nada de tão distante tinha me encarcerado a mente.
Retorno aos meus onze ou doze anos. Estudante relapso mas quieto, ficava sempre do lado da parede da sala de aula. Não gostava de ficar sentado junto a janela nem ao meio da sala, tinha de ser na fileira junto a porta. Na janela o sol de março e abril me torravam os miolos. No centro da sala o que me torrava era a sensação de ser por todos observado, do primeiro fio de cabelo aos calcanhares, seria um cárcere ali ficar.
Meses sempre andavam e eu alí junto a parede. Às vezes desenhava um homenzinho e ficava a conversar com ele, imaginando querer estar noutros lugares mas não naquela sala de aula com aqueles paspalhos fracos, vís, feios e miseráveis digo de coração até porque eu era muito do miserável, sem trocados para o lanche, e que sempre trocava de camiseta com minha irmã que chegava mais cedo da escola, para retornar à mesma com uma vestimenta que tinha saído dali a pouco. Necessariamente era bom, minha irmã cheirava bem e eu ficava com seu cheiro talvez para ela não fosse tão bom assim. Mas eu tinha apenas meus onze anos...não fedia só quando no pátio corria de um lado a outro...mas isso já é uma outra história.
Sempre a conversar com meu boneco imaginário. Sempre só, a revelia da matéria, dos professores (tirando uma em especial), enfim de todos que se prostravam naqueles dias naquelas salas suarentas com seus rostinhos prontos a receberem a enchurrada de merda que todos aqueles velhos e velhas (tirando uma em especial) vomitavam em nós.
O mais legal eram os intervalos. Correria geral. COMBATE!
Eu, Rogério, Israel, Rogerinho, Eduardo, Hugo blosta, Sydnei Magal, Ninho, Fernando, Angelo Neguinho, Rodrigo blue, Alex laranja ou goiaba e mais uma monte de vagabundos a correr no pátio de cima a abaixo colocando o inspetor de alunos à loucura...como era o nome dele mesmo...chamavam-no de Cirilo anos depois por causa de uma novela que não lembro o nome...foda-se.
Era o único momento que realmente me sentia junto daqueles paspalhos. Todos idiotas...mas voltando ao sonho, tinha um tachinha filho da puta folgado que sempre pendurava em mim para me achincalhar. Eu deixava afinal de contas seu irmão mais alto, forte e já fumava cigarros na porta da escola. Sempre ao entrar o pirralho vinha em mim na tentativa de arrancar alguns trocados ou meu lanche ou algo de valor que aquela barata ambulante desejasse. Seu irmão sempre a rir com seus cupinxas e eu a pedir encarecidamente por paz e bla bla bla.
- Sou pobre também, tá vendo esta camiseta? Perguntava eu.
- Sim, respondia o pirralho aos olhos do irmão.
- É de minha irmã, não tenho nem roupa para vir à escola. Retrucava eu com firmeza na tentativa de que eles simpatizassem comigo afim até mesmo de chamarem-me a sua gangue.
Quando esta frase pronuncie cairam no riso e recomeçaram agora todos a vomitarem frases que de tanta raiva eu nem mais ouvia. Chamaram-me de mulherzinha, puta, viado.
Não me lembrava de muita coisa até mesmo porque meu sonho recortou tudo e remoldou a história.
Falavam eles. - Que viado vem com a roupa da irmazinha! Bixa, bixa, bixa! Em coro mal orquestrado a cantar à todos na entrada do EEPSG Indiana Zuicher Simões de Jesus.
Meu sangue subia como fumaça de uma chaminé que queima carvão afim de derreter alguma matéria prima e tinha a impressão de meus olhos fulgurarem sangue. Aproximei do cupinxa pirralho e desferi um canhão em seu estômago. De repente todos pararam de rir. Já não era mais uma tarde e sim uma noite chuvosa e eu estava só na mesma entrada da escola mas com todos os cupinxas olhando a mim.
Corri, parecia que corria de uma vastidão de insanos que queriam arrancar minhas vísceras. Corri como se nunca tívesse corrido. Corri tanto que ao acordar cansado estava. Entrava em vielas, ruas, campos de futebol, terrenos baldios e nunca conseguia me desvencilhar do pirralho seu irmão e dos demais cupinxas de sua gangue.
De repente estava numa linha férrea suplantada por apenas dois fios a uns vários quilômetros de altura e me cagava de medo pois apenas os via lá embaixo a minha espera. Pensei comigo mesmo do tanto medo que tenho de grandes altitudes e caísse iria morrer de um ataque fulminante do coração. Assim os via caminhando seguindo-me lá debaixo e eu andava sobre os dois fios chorando por estar ali e por ter desobedecido minha mãe. Ela sempre a mim falava. - Não fique na porta da escola meu filho.
E lá estava eu me dependurando sobre dois fios finos que ainda eram os trilhos de vagões da morte. Senti ódio de mim mesmo e ao rastejar o medo comia meu estômago corroendo com o sulco gástrico meus pulmões, coração e fígado. Que fazer numa situação dessas?
Não saberia dizer, apenas rastejava e pedia a Deus que não enviasse composição alguma a lugar nenhum. Dito e feito lá vem o grande trem vermelho destinado a estação Luz. Vejo o pátio do Bráz, sendo assim estou nas alturas do Bráz.
Os cupinxas a me observar parecem cachorros famintos loucos por carne podre e a composição se aproxima não sei o que fazer. Segundos se passam mas vejo o tempo passar vagarosamente e num movimento tento alçar-me a um edifício a minha frente. Me jogo naquela direção bato com a face no prédio e vou escorrendo rasgando meu maxilar e o deixando igual a uma pintura vermelha no prédio.
Caio lá de cima e ao chão chego exausto e com os cupinxas a meu encalço. Me entrego ao fim das pernas. Por fim sou golpeado pelas costas e socado até o fim das gotas de sangue, tento desferir alguns golpes mas como um bêbado vejo meu braço se movimentar vagarosamente e recebo no estômago um mexilhão de dor que me faz ao chão cair.
Sou socado. Esmurrado como um saco de estopa que brincava quando era criança. O cupinxa menor fica a me importunar os ouvidos enquanto seus capatazes fazem o serviço sujo.
De repente não mais alí estamos no chão empedregulhado da linha férrea. O jogo virou...lembro de mim e de meu amigo negro Rogério a socar um louro folgado que não nos deixava brincar no pátio. Vejo os cupinxas na entrada do prédio a observar-me novamente, mas é outra ocasião.
Rogério passa uma rasteira no louro, e ele despenca no barro vermelho seu amigo tenta fugir mas eu o agarro e de costas ele fica a mim. Tento desferir alguns golpes em seu rosto, mas apenas atinjo sua cabeça. Ele começa a chorar copiosamente chamando por sua mãe. Neste momento eu congelo e lembro da minha mãe. Solto o pequeno rapaz e o deixo correr descendo a enlameada rua. Chove torrencialmente e Rogério esmurra o outro louro rapaz. Olho ao lado e os cupinxas da gangue choram também como se suas mães estivesses mortas e o pirralho menor num rato se transforma e a mim mostra os dentes. Tenho medo, mas grito a ele com toda a força de meus pulmões e caio sobre ele arrancando sua cabeça e rasgando seu corpo. Não mais grande sua gangue parece e minha mãe vem a meu socorro a num passe de mágicas volto a lembranças de minha vida num outro lugar cortinas que hoje são colchas de cama.
Sou o mesmo. E tudo parece tão estranho. Caminho pelo antigo apartamento medindo os locais onde vivi quando pequeno e tentando lembrar de como foram aqueles momentos, deito num sofa na sala e sinto meu corpo desfalecer e a pedir outro sonho no mesmo sonho. Lembro quando jogava bola na quadra junta Câmara dos vereadores e um grande cachorro correu atrás de mim e pulei no colo de meu pai que destrinchou o dono do cachorro verborragicamente.
Retrocedi anos em minutos. Talvez a me esconder dos sonhos que me inundam sempre.
Continuo a ser eu mesmo...desconexão de experiencias passadas, reconexão de dores vivídas.

Desembarque

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