sexta-feira, julho 22, 2005

Um velho

Embarque


Esvaziado

Arquiteto do fim dos dias e da comiseração. O acaso arranca meus pés do chão e num tufão carrega este corpo para longe, o mais longe dos lugares. Estou mudando, talvez retornando a algo do passado. De um passado muito distante para vocês. Onde toda a dor era sentida através da própria escolha por ela. Arquiteto, ou melhor, andarilho. Andar somente andar. Caminhos não precisam mais com força e dor serem esculpidos. Sentar e chorar pra quê? Digam-me para quê! Melhor estar a serviço da corrente dos dias vindouros. Agarrar-se a própria sorte, deixar que o mar consuma o que resta de digno e formoso de uma impressão. Que os ácidos, desencavem destas sujas carnes algo que não seja as impressões passadas e sedimentadas a meses pelo medo da minha entrega a meu destino.
Delega-se ao contexto a foice da morte dos nossos deuses. Diante deste diagnóstico idiota, vos entrego a palidez, indiferença. Não mais lágrimas.
Tive visões, que resgatava um chicote e vergastava minhas costas em sinal de entrega a meu destino. Vi também um velho cego que mostrou-me uma foto. Disse-me ele que a água da chuva tinha corroído o rosto da pessoa da foto, e que essa pessoa era eu. Que eu tinha sído corroído pelas torrentes gotas que caiam do céu.
Não chorei. Sábia o que tinha feito. Um enorme bolo juntou-se em meu estomago e de lá saí correndo. Tentando insistentemente vomitar, mas apenas saliva em forma de espuma de minha boca saía, e um fétido hálito. Ele disse que eu morreria após a saída destes liquídos, mas que renasceria se cuspisse tudo ao alto. Corri por cidades a chegar a desertos, a vastidões de terras áridas e me via na paisagem pobre. Mais magro e pobre. Sabia que morrer duraria dias e não conseguiria matar-me, pois nada havia alí a não ser terra seca. Morreria de inanição.
Quando o velho reapareceu um raio vindo do céu rasgou-me o corpo, e no sequente segundo, um calor. A descer de minha cabeça a queimar pés e mãos. Não chorei, este era meu destino. Estava feliz por entregar-me de vez, por deixar meu corpo suavemente ser carregado pelo movimento da maré.
Não havia mais estomago para lutar, pois nada mais teria de ser consumido e transformado em energia para a luta. Nais mais cansaço havia, nem fome, esperança, dor, felicidade. Transformei-me num monolíto no deserto.
Apenas algo a mostrar o que tinha sído muito gritado e pouco feito. O quão grande tinha-se transformado e vazio.
Meses se passaram. Abro os olhos e ao lado escuto o ranger dos ossos, e o descer das lágrimas. Estou num vale de lama deitado e ciente. Não há mais necessidade da ajuda e da força. Num mosaico em forma de filme vejo as pessoas passarem pela minha vida, sem pedir nada em troca, nem companhia.
Quando o antigo velho dos confins próximo ao deserto tinha mostrado a foto a mim, tinha me alertado para a própria morte. Uma morte diferente, que possivelmente se processasse por dias e por situações. Também disse do tal mangue de lágrimas. Que renasceria disso e que mudaria por nutrir-me dos alimentos deste lamaçal.
Zerado. Zero à esquerda. Gosto de lama na boca, lama salgada. Volta a chover e não mais lágrimas cairão do céu. Por mim mesmo alcunho o rochedo feliz. A rocha fria que estagnou-se em minhas lembranças a apenas compor o enterro.
Um enterrado vivo. A remoer-se dum passado distante, e que hoje arrepende-se do próprio monolíto.

Desembarque

Herculano Netto

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